Pelo pediatra do desenvolvimento Miguel Palha
Se a coisa importante é a utilidade social temos de começar reconhecendo que a criança é inútil, E Entre nós inutilidade é nome feio. Já houve tempo em que ela era a marca de virtude.
O pai orgulhoso e sólido olha para o filho saudável e imagina o futuro. – Que é que você vai ser quando crescer? Pergunta inevitável, necessária, previdente, que ninguém questiona.
– Ah! Quando eu crescer, acho que vou ser médico!
A profissão não importa muito, desde que ela pertença ao rol dos rótulos respeitáveis que um pai gostaria de ver colados ao nome do seu filho (e ao seu, obviamente)... Engenheiro, diplomata, advogado...Imagino um outro pai, diferente, que não pode fazer perguntas sobre o futuro. Pai para quem o filho não é uma entidade que «vai ser quando crescer», mas que simplesmente é, por enquanto... É que ele está muito doente, provavelmente não chegará a crescer e, por isso mesmo, não vai ser médico, nem mecânico nem ascensorista.
Que é que seu pai lhe diz? Penso que o pai, esquecido de todos «os futuros possíveis e gloriosos» e dolorosamente consciente da presença física, corporal, da criança, aproxima-se dela com toda a ternura e lhe diz: «Se tudo correr bem, iremos ao jardim zoológico no domingo...»
É, são duas maneiras de se pensar a vida de uma criança. São duas maneiras de se pensar o que fazemos com uma criança.
Eu me lembro das propagandas curtinhas que se fizeram na televisão, no ano da criança deficiente, para provar que ainda havia alguma esperança, para dizer que alguma coisa estava sendo feita. E apareciam lá, na tela, crianças e adolescentes, cada um excepcional a seu modo, desde síndrome de Down até cegueira, e aquilo que nós estávamos fazendo com eles... Ensinando, com muito amor, muita paciência. E tudo ia bem até que aparecia o ideólogo da educação especial para explicar que, daquela forma, esperava-se que as crianças viessem a ser úteis socialmente... E fiquei a perguntar-me se não havia uma pessoa sequer que dissesse coisa diferente, que aquelas escolas não eram para transformar cegos em fazedores de vassouras nem para automatizar os portadores de síndrome de Down para que aprendessem a pregar botões sem fazer confusão... Será que é isto? Sou o que faço? Ali estavam crianças com necessidades especiais, não-seres que virariam seres sociais e receberiam o reconhecimento público se, e somente se, fossem transformados em meios de produção. Não encontrei nem um só que dissesse:
«Com esta coisa toda que estamos fazendo, esperamos que as crianças sejam felizes, dêem muitas risadas, descubram que a vida é boa... Mesmo uma criança especial pode ser feliz. Se uma borboleta, se um pardal e se uma ignorada rãzinha podem encontrar alegria na vida, por que não estas crianças, só porque nasceram um pouco diferentes...?»Voltamos ao pai e ao seu filhinho. Que temos a lhes dizer?
Que tudo está perdido? Que o seu filho é um não-ser porque nunca chegará a ser útil socialmente? E ele nos responderá:
«Mas não pode ser... Sabe? Ele dá risadas. Adora o jardim zoológico. E está mesmo criando uns peixes, num aquário. Você não imagina a alegria que ele tem, quando nascem os filhotinhos. De noite nós nos sentamos e conversamos. Lemos estórias, vemos figuras de arte, ouvimos música, rezamos... Você acha que tudo isto é inútil? Que tudo isto não faz uma pessoa? Que uma criança não é, que ela só será depois que crescer, que ela só será depois de transformada em meio de produção?
E eu me pergunto sobre a escola... Que crianças ela toma pelas mãos?
Claro, se a coisa importante é a utilidade social temos de começar reconhecendo que a criança é inútil, um trambolho. Como se fosse uma pequena muda de repolho, bem pequena, que não serve nem para salada nem para ser recheada mas que, se propriamente cuidada, acabará por se transformar num gordo e suculento repolho e, quem sabe, num saboroso chucrute. Então olharíamos para a criança não como quem olha para uma vida que é um fim em si mesma, que tem direito ao hoje pelo hoje... Ora, a muda de repolho não é um fim. É um meio. O agricultor ama, nas mudinhas de repolho, os camiões de cabeças gordas que ali se encontram escondidas e prometidas. Ou, mais precisamente, os lucros que delas se obterão... utilidade social.
Reconheçamos: as crianças são inúteis...
Entre nós inutilidade é nome feio. Já houve tempo, entretanto, em que ela era a marca de uma virtude teológica. Duvidam? Invoco Santo Agostinho, mestre venerável que declara em De Doctrina Christiana: «Há coisas para serem usufruídas e outras para serem usadas». E ele acrescenta: «Aquelas que são para serem usufruídas nos tornam bem-aventurados.» Coisas que podem ser usadas são úteis: são meios para um fim exterior a elas. Mas as coisas que são usufruídas nunca são meio para nada. São fins em si mesmas. Elas nos dão prazer. São inúteis.Uma sonata de Scarlatti é útil? E um poema? E um jogo de xadrez? Ou empinar papagaios?
Inúteis.
Ninguém fica mais rico.
Nenhuma dívida é paga.
Por que nos envolvemos nessas atividades, se lhes faltam a seriedade do pragmatismo responsável e os resultados práticos de toda atividade técnica? É que, muito embora não produzam nada, elas produzem o prazer.
O primeiro pai fazia ao filho a pergunta da utilidade: «Qual o nome do meio de produção em que você deseja ser transformado?» O segundo, impossibilitado de fazer tal pergunta, descobriu um filho que nunca descobriria, de outra forma: «Vamos brincar juntos, no domingo?»